quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

O sol e a lágrima

Um conto de Wagner Ribeiro

Para a pequena Ingrid

Obrigada, eu não podia perder esse trem, disse ela tentando recuperar o fôlego. Faíscas saltaram dos olhos do rapaz. Não foi nada, respondeu alargando sorriso no rosto. E ela ficou ali, enxugando na blusa as mãos molhadas de suor, fingindo ajeitar a roupa, hipnotizada pelo rosto dele, guarnecido com um nariz pequeno e arrebitado, os lábios firmes e o maxilar quadrado, potente; mas, sobretudo, foram os olhos de misterioso âmbar que mais chamaram atenção dela.

No rosto da moça havia uma expressão de fragilidade, uma espécie de inocência ressentida. É isso, ela é uma criança roubada. E o assalto dos sonhos infantes deixa a impressão de uma lágrima eternamente congelada nos olhos líquidos, proibida de cumprir o roteiro habitual das lágrimas, não descia pelo rosto, ficava estagnada, dando brilho nos olhos que já brilhavam de tanto verde.

Sem saber o que fazer com o corpo, tratou de atirá-lo no banco à frente. Sentou-se ao lado do rapaz, desviou o olhar tentando esconder o verde, a lágrima retida que ninguém se dera conta, exceto aquele estranho de olhos cor de âmbar, cheios de silêncio e liberdade.

Ufa, quase não deu tempo, valeu mesmo por segurar a porta, disse ela com tom de voz baixo e suave. Não precisa agradecer, eu já tinha visto você descendo as escadas, correndo, até pensei que fosse cair, ele respondeu, querendo estabelecer um grau de intimidade, por menor que fosse. E o máximo que ela lhe ofereceu foi um esboço de sorriso lateral, enquanto passeava os olhos pelo chão.

- Qual seu nome?, ele perguntou querendo derreter a névoa glacial entre os dois.

- Stella, todo mundo me chama de Stella.

- Como assim todo mundo te chama de Stella? Não é esse o seu?

- É sim, mas é que o meu nome é composto, é Stella Maris. Mas as pessoas não gostam muito, e eu também não, parece nome de velha, o pessoal do cursinho vive tirando sarro da minha cara.

- São uns bobos, isso sim. Seu nome é lindo, combina com você. Sabe o que significa?

- E tem significado?

- Claro! Quer dizer Estrela do Mar.

- Hum, não sabia disso. E o seu, qual é?

- Gabriel, significa A força de Deus. Pelo jeito nossos nomes têm algo em comum, algo de sagrado, né?

- Acho que você é bem religioso.

- Que nada, nem acredito em Deus, não no Deus que todo mundo acredita. Num dá pra levar à sério um cara que pune e dita tantas regras. Pra mim, Deus e a liberdade são a mesma coisa. Minha forma de prece é remar com toda fé para conseguir entrar naquela onda quem vem vindo em minha direção, depois de viajar quilômetros e mais quilômetros pelo oceano. E no momento que subo na prancha e deslizo sobre a onda, minha mente se liberta de tudo que existe de ruim no mundo, fico completamente paz. Isso é estar em contato direto com Deus.

- Bonito isso!

- Posso de dizer uma coisa? Quando vi você descendo as escadas, antes de chegar na plataforma, queria ver você mais de perto, porque de longe você me pareceu tanto com uma personagem de romance.

- É mesmo? Que personagem?

- Capitu, aquela que ninguém sabe se traiu ou não traiu o bentinho. Ah! Até que enfim um sorriso nesse rosto, lindo sorriso, devia sorrir mais.

- É que essa situação toda é muito engraçada, e estranha, nunca fui cantada assim, e eu nem sabia que surfista gosta de ler.

Outro sorriso iluminou o rosto dela, mas um sorriso diferente do primeiro. Esse tinha significado e profundidade, meio inocente, meio malicioso, vou chamar de sorriso Stella Maris.

- Então você conhece muito pouco sobre os surfistas, como a maioria das pessoas, de besta e burro a gente só tem a cara e o jeitão de andar. A gente tem segredos e truques, sabia? A capa das nossas pranchas são saquinhos de feitiçaria. E a parafina, pensa que a parafina é uma simples coisa que a gente passa na prancha. Que nada. É uma pasta mágica, que faz a gente caminhar sobre as águas. Vou te contar um segredo, mas não conta pra ninguém, Jesus passava parafina nos pés.

Os dois desataram a rir doidamente, não paravam nunca, gargalhavam de doer a barriga, até encher os olhos de Gabriel de lágrima, foi aí que em meio ao riso e ao choro, ele curvou o corpo e pousou a mão sobre o joelho dela, e ela, num gesto automático, colocou a mão sobre a dele, pequena, branca e macia. Ao sentir a textura da pele, ela puxou a mão rapidamente, as gargalhadas foram diminuindo, diminuindo, tornando-se simples risos, até que as vozes se calaram enquanto os corações pulsavam.

Gabriel virou o corpo de lado, enfiou a mão no bolso e tirou uma caixinha, coberta de tecido preto. Ela olhava de lado, com a sensação de conhecê-lo há anos, vai aprontar algum truque sedutor; que será? O zíper correu, a caixa se abriu, e como se descobrisse um segredo íntimo, ela descobriu uma gaita.

Os olhos dele se atiram pela janela em busca do horizonte, o sol começava a surgir, derretendo a névoa, exalando o cheiro do novo. Colocou a gaita na boca, as notas preencheram o vácuo entre eles. Stella o olhou. O verde dos olhos dela se misturou ao âmbar dos olhos dele, dando vida a uma nova cor, vibrante e intensa, desconhecida pelo mundo e por eles mesmos.

Esticou o braço, ela entendeu, hesitou, mas não podia resistir à mágica do instante, do raro, raríssimo instante em que algo realmente Belo acontece. Os corpos se aproximaram, sentiu-se protegida pelos braços dele, pela música. De repente, ele parou de tocar e com a gaita entre os dedos apontou o mundo, lá fora, e começou a cantar baixinho:

Olha é o sol,

olha é céu,

olha é o amor...

Seus olhos são lindos, disse ela, a resposta foi imediata: são olhos de surfista, os surfistas enxergam o mundo de forma diferente, acho que um mundo melhor. Stella, tenho que descer na próxima estação, vem comigo! vem, vem comigo, deixa eu te mostrar o mar, quero te ensinar uma coisa. Não posso, ficou doido, não posso, não posso. Vem, a estação tá chegando, vem, vamos, quero te contar uma história, vem Estrela do Mar, fica comigo hoje... Não posso, não posso, conta a história agora, rápido, quero saber. Vem comigo, quero te contar a história do mundo. Gabriel se levantou, pegou a prancha e colocou em baixo do braço, segurou a mão dela. Vem, Stella, vem comigo. Não posso, não posso, semana que vem, semana que vem eu vou. Promete? Prometo, acho que prometo. Vou ficar te esperando. Juro que vou.

O trem parou, Gabriel caminhava de costas, o âmbar fixo no verde, a alça da capa da prancha cruzando o peito, colocou a gaita na boca novamente, a música renasceu, e foi caminhando de costas, caminhando e tocando a gaita, um encantador de serpentes, mais alguns passos e desceu do trem. Ficou ali, parado na plataforma, observando-a. Agora o vidro da janela do trem era a intransponível barreira entre eles. Stella parece um peixinho de aquário.

O trem começou a se movimentar, o sol despontava, tingindo tudo de dourado, Gabriel se tornara a silhueta do corpo e da prancha, indivisíveis, ela parecia ainda ouvir o som da gaita, é que a música rompeu a fronteira do corpo e se instalou na alma, a silhueta foi ficando menor, e menor, quando estava quase desaparecendo, Stella respirou fundo, surgia à sutileza do sorriso Stella Maris. O sol brilhou ainda mais forte, enquanto, enfim, a lágrima cumpria sua sina.

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