sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

O homem e o menino

Quando era menino detestava o Natal, fazia aniversário no dia 24 dezembro e sempre era engambelado com um presente só, diziam valer por dois. Sacanagem da grossa para se fazer com uma criança. Quando teve consciência disso, começou a desconfiar da honestidade dos adultos. Além disso, um bocado de gente esquecia o aniversário dele por causa das festanças natalinas.

Mas o Ano Novo era diferente. A mãe vestia ele todo de branquinho, passava perfume e tudo, enquanto dizia que o velhinho estava indo embora e a meia noite um ano novinho nasceria. O menino estancava os olhos no ar e ficava alguns minutos imaginando um velho corcunda caminhando lentamente em direção ao fim da rua, preocupado em desaparecer na hora marcada, afinal, a decrepitude da velhice não deve atrasar a chegada do bebê ruivo e rechonchudo, sorridente e com bochechas coradas. Era assim que o menino imaginava o Ano Novo.

O melhor momento do Ano Novo era a ceia. A família se sentava à mesa às 23h30. O menino engolia a comida rápido, pois o clímax da festa vinha depois do jantar: as rabanadas, bêbadas de leite e salpicadas com açúcar e canela, a cada mordida, ele tinha certeza de que seria feliz. Para Sempre.

O tempo passou e a inocência lhe ia sendo roubada. Só aos nove anos entendeu que o Natal era a comemoração pelo nascimento de Cristo. Quer dizer, esqueciam o aniversário do menino só porque era também aniversário de Jesus? Evidente, o menino se sentia (e até hoje se sente) mais importante do que Cristo. Afinal, Cristo estava morto, não existia, mas o menino ali estava.

Odiou Cristo. Na noite de um Ano Novo, planejou vingança, acertaria diferenças com o Nazareno. Na sala de casa havia um quadro de Jesus, esperou todos se sentarem à mesa para ceiar, saiu de fininho, roubou o lápis de olho e o batom da mãe, fez bigode francês em Cristo e passou lhe batom nos lábios. Afastou-se para contemplar o resultado da vingança. Sorriu, satisfeito. Mas a mãe lhe pegou em flagrante delito, levou uma surra, ficou de castigo o resto da noite, e cruelmente a mãe o deixou sem uma rabanada. Desconfiou que não seria mais feliz. Para Sempre.

E foi assim, aos poucos, a violência penetrou dentro dele e ali encontrou alimento e refúgio.

Aos 14 anos, conheceu Sartre e os Caminhos da Liberdade. Abandonou idéias irrealizáveis aqui e agora. Transformou todas as situações da vida em pequenos projetos componentes do quadro geral de um projeto também geral: manter-se vivo. Desenvolveu truques para driblar as barreiras que o impediam de realizar os projetos, descobrindo a necessidade de continuar.

Anos mais tarde, sentiu na carne que o amor não tem bons sentimentos e os bons sentimentos na verdade não são tão bons assim. Houve desprezo pela humanidade, passou a respeitar o ser humano só porque existe a polícia.

Então qual a serventia do ser humano para o menino que virou homem mas em breve estará em busca do menino que se fora? Para o sexo, mas só com os melhores exemplares. A beleza da carne é primordial quando se descobre a feiúra da alma.

Hoje, adota O Corvo de Poe. O Ave deita raízes, um câncer, no ombro esquerdo do homem, que caminha pelas ruas e observa as pessoas, enquanto o Corvo vai lhe repetindo ao pé do ouvido. Nunca mais.

Chegou mais um Ano Novo. A mãe fará novamente rabanadas bêbadas de leite e salpicadas com açúcar e canela. Ele morderá a rabanada com gula e se sentirá feliz. Para Sempre? Nunca mais.

Mas há momentos, quando o Corvo adormece, o cansaço abate o homem, derrotado pela vida encosta à cabeça no travesseiro e se lembra do menino, branco e magro, encostado à janela, no dia seguinte a surra pela vingança com Cristo, metade do rosto escondido pela cortina da sala e a outra metade observando o mundo com o olho já brutalizado.

Ao se lembrar da inocência, o homem chora, o Corvo despertou. E assim adormece esse homem. Não sonha. Nunca mais.

O sono é tranqüilo, amanhã começa outro ano, e até mesmo dormindo, ele sabe: é preciso continuar. Para sempre.

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