terça-feira, 30 de março de 2010

Sobre a mídia e o Santo Daime


Um livro que me fascinou quando adolescente foi o romance O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde. As histórias das peripécias do diabo era um tema que me atraia demasiadamente, porque, desde aquela época, a ganância ilimitada dos seres humanos, que trocam suas almas por coisas fúteis, já era incompreensível para mim. E continua sendo até hoje.

Para quem não conhece a história, Dorian Gray era um jovem lindíssimo da alta sociedade, que despertou o desejo do ilustre pintor Basil Hallwardem de imprimir fielmente o Belo sobre uma de suas telas. Dorian, envaidecido de si mesmo, exclama algo do tipo: “Ficarei velho e feio. Entretanto, o quadro permanecerá eternamente jovem e lindo. Eu daria a alma para que ocorresse o contrário”.

O diabo ouve suas preces. Os anos passam e Dorian conserva a beleza angelical, enquanto o quadro envelhece em seu lugar. Como se não bastasse à feiúra da velhice, o quadro passa a tomar feições demoníacas a cada ato maldoso de Dorian. Aterrorizado com as feições da tela, que representam sua verdadeira face, Dorian pratica atos bondosos para reverter à situação. Volta ao quadro para verificar os efeitos produzidos por sua bondade. Constata que a mudança foi para pior: a imagem passara a exibir um sorriso hipócrita.

Contemplar a própria face estava além do limite de dor que Dorian poderia suportar. Ensandecido, ele crava um punhal no coração de seu retrato e se auto-aniquila.

Parece-me que O Retrato de Dorian Gray é a melhor forma de pensar a mídia atual, principalmente as revistas semanais, que escondem a face demoníaca e hipócrita sob o papel de bondosa prestadora de serviços.

Na madrugada de sexta-feira (12/03), um amigo jornalista, que trabalha num dos grandes jornais de São Paulo, me ligou com a notícia: “O Glauco e o filho foram assassinados! Parece o assassino fazia parte do Daime. O advogado disse que o assassino tava doidão.”

Nunca fui amigo do Glauco - nem pretendia ser - apenas cruzei com ele durante uma palestra no Salão do jornalista escritor, realizado há alguns anos no Memorial da América Latina. Mesmo assim, agradeci a informação antes de desligar o telefone. No entanto, não consegui mais dormir. Eu sabia que o caso seria explorado à exaustão pela mídia. E, pior ainda, sabia que, se o assassino de fato fosse membro do Santo Daime, a busca por um fator que explicasse e desse base para os desdobramentos da notícia – as “suítes”, no jargão jornalístico – naturalmente, seria a ayahuasca.

Infelizmente, eu estava certo. Logo o Daime foi escolhido pela imprensa como responsável pelos assassinatos do cartunista Glauco Villas Boas e de seu filho, Raoni Villas Boas, por Carlos Eduardo Sundfeld Nunes.

Deu-se, então, o início de uma mesopotâmica campanha de demonização do uso da ayahuasca, em conseqüência, a criação de uma imagem distorcida e preconceituosa do Santo Daime, por meio de opiniões obscurantistas em proporções absurdas, exigindo restrições e até a proibição da bebida em rituais religiosos.

O rosto claramente psicótico de Eduardo Sundfeld Nunes foi estampado na capa de duas das revistas de maior circulação no Brasil: Época e Veja.

A revista Época, na edição do último fim de semana, cedeu dez páginas para erigir a condenação do Santo Daime, já que o verdadeiro criminoso fora parar detrás das grades sem maiores esforços, só um policial federal baleado no braço, o que não é nada se comparado a brutalidade das duas mortes anteriores. Contudo, a resolução de crime envolvendo uma pessoa pública, quase celebridade jornalística, não poderia ter um final assim... assim... tão sem graça, venderia poucos jornais e revistas.

A reportagem recebeu o sugestivo título: O DOIDO, O DAIME & O CRIME. Foram ouvidas as versões dos pais e de especialistas. Mas nenhum representante do Santo Daime, ou de qualquer uma de suas vertentes, teve a chance de defender o ritual ao qual pertence, ou, pelo menos, de explicar o contexto religioso no qual a ayahuasca é utilizada.

Para completar a lição de jornalismo, a revista Época publicou, no final da reportagem, um artigo pra lá de preconceituoso do jornalista Paulo Nogueira, que termina com o seguinte parágrafo:

“Com todo respeito, espero que a versão brasileira da crendice, acrescida de uma droga que pode levar você a se achar Jesus Cristo, encontre limites.”

Pois, de minha parte, com todo respeito, não respeito jornalistas que pregam a intolerância religiosa e o cerceamento da liberdade de culto, baseando-se num caso isolado e oportunamente generalizado, quando o papel de um jornalista equilibrado é justamente o contrário disso. Aliás, parece-me que tal conduta também está se tornando tradição da própria revista Época.

Quanto à revista Veja, é sabido que há muito tempo deixou de ser um veículo sério, como o foi durante certo período da truculenta ditadura militar brasileira. Portanto, limito-me a transcrever abaixo o título de capa, o subtítulo e o título da reportagem. Estes elementos bastam para que se tenha uma idéia clara do tipo de jornalismo praticado por este veículo.

Título de capa:

O PSICÓTICO E O DAIME

Até que ponto se justifica a tolerância com uma droga alucinógena usada em rituais de uma seita?

Título da reportagem:

ALUCINAÇÃO ASSASSINA

Sem mais comentários.

***

É lamentável que alguns jornalistas e alguns veículos comunicação, no lugar de estimular debates equilibrados, sigam mais uma vez pelo débil caminho do reforço do preconceito e da opressão simbólica, disseminando mensagens subliminares do tipo: "Todos que tomam ayahuasca e participam do Santo Daime são psicóticos, assassinos em potencial". É vergonhoso esse tipo de conduta; ainda mais se tratando de formadores de opinião duma sociedade democrática.

Os jornalistas e os veículos de comunicação brasileiros precisam tomar cuidado com o tipo de sociedade e de cidadãos que estão formando.

Imagine se sociedade inteira decide rezar pelo catecismo dos veículos e dos jornalistas que produziram essas reportagens.

É mais produtivo e honesto fomentar uma sociedade composta por pessoas providas do sentimento interior de liberdade e de respeito ao próximo. Casos isolados não podem ser generalizados para macular a imagem de milhares de pessoas que dedicam suas vidas em função de uma filosofia cujo objetivo maior é alcançar a paz, provinda da união do Homem com a natureza.

Desconfio que a mídia precisa se lembrar diariamente de Dorian Gray, antes que seja tarde demais.

Um comentário:

  1. Que critica foi essa rapa..... tava inspirado
    Não só o jornalismo tem essa faceta "Dorian Gray", mas como toda a sociedade já está impregnada de hipocrisia e demagogia.

    Parabens pelo post, muito bom.

    Abraços Amarelo

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